O Projeto de Lei 4.758/2020 prevê um instituto semelhante ao conhecido Trust
Muito utilizada em países como Estados Unidos, Inglaterra, Suíça, Bahamas, Malta, Emirados Árabes, dentre outros, entenda neste artigo o que é o Trust.
No conceito contido no Projeto de Lei, o Trust recebe o nome de “contrato de fidúcia“ e ainda passa por análises na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados Federal, desde 2020.
O procedimento do Trust é conhecido pelos brasileiros em seriados e filmes, como por exemplo “A Rede Social” (The Social Network, 2010), filme biográfico sobre a criação do Facebook menciona várias vezes os irmãos Winklevoss, cujas finanças são frequentemente protegidas por estruturas de trusts.
Entenda no artigo de hoje.
AFINAL, O QUE É TRUST?
O Trust surgiu Reino Unido, por volta do século V, em meio ao regime feudal.
Na baixa idade média, durante as Cruzadas, os cavaleiros partiam da Europa Ocidental em direção à Terra Santa e à cidade de Jerusalém, e como com a incerteza do retorno com vida, muitos entregaram seus bens para serem administrados de pessoas de confiança, daí vem o termo “trust”.
Com esse background, podemos entender que Trust é uma estrutura de planejamento patrimonial ( oque particularmente aprecio) criada nos países com o sistema jurídico Comum Law, que não é o sistema adotado pelo Brasil, apesar de cada vez mais ser utilizado por brasileiros, pelo benefícios tributários e proteção patrimonial.
Para que serve o Trust no século XXI?
O Trust é (em linhas gerais) uma ferramenta de organização e administração de patrimônio em prol do (s) beneficiário (s), que apresenta um estrutura básica de:
SETTLOR, TRUSTEE, BENEFICIARY e PROTECTOR
- Settlor: É o proprietário, instituidor, que entrega os seus bens a um terceiro, mediante declaração de vontade (letter of wishes ou trust deed);
- Trustee: O administrador dos bens, podendo ser pessoa física, jurídica ou pessoa física ou instituição financeira;
- Beneficiary: O (s) beneficiário (s), aquele que irá receber os dividendos ou os bens e
- Protector: Um espécie de gestor de supervisão, cargo opcional.
É o Settlor prevê algumas obrigações e condições para a administração dos bens ao trustee (administrador), já que ele é o proprietário dos bens (móveis, imóveis, investimentos, ativos, etc).
Exemplos:
A família Sales instituiu um Trust para custear a educação de sete filhos, com rendimentos mensais até os 24 anos. Após completar essa idade, os beneficiaries recebem o patrimônio e poderão administram, sem o auxílio do Trustee.
Outros exemplos:
Luíz institui um Trust (ele é o Settlor) e prevê que apenas depois da sua morte, Luíz Neto (o beneficiary) receberá e poderá administrar os bens (herança digital, royalties, commodities, criptomoedas) sem a intervenção de Benedita (Trustee).
A família Dumas institui uma Trust com previsão de que apenas os recursos provenientes dos rendimentos desse trust sejam repassados para os beneficiários, e não o principal.
Isso para que o patrimônio permaneça na família durante gerações e gerações, tornando indisponível a venda, alienação e partilha dos bens desses bens. Nota-se imensa possibilidade de flexibilidade do Settlor (proprietário) para dispor e organizar os bens da forma que desejar, possibilidade que não possui figura semelhante o direito brasileiro.
Estrutura organizacional
Os brasileiros precisam tomar cuidado ao estruturar um Trust, de forma que se alinhe a legislação brasileira, respeitando as regras de meação e partilha dos herdeiros legítimos, prevenindo demandas internacionais sucessórias, no Brasil ou no Exterior.
É necessário que a família, ao constituir um Trust, tem clareza sobre o objetivo buscado e que realmente confie na gestão do Trustee, já que ele irá reger a orquestra (administrar) conforme a música (regras) do Settlor.
Aí que entra o Protector, que irá fiscalizar a atuação do Trustee para que se tenha maior segurança de que este patrimônio chegará bem administrado ao beneficiário (s), de acordo com a letter of wishes, uma declaração que lembra um contrato societário.
Em alguns países, existem legislação específica para as obrigações do Protector, que podem ter até poder de veto.
Parece obvio, porém o trustee não pode exercer também a função de Protector em alguns países, como Bahamas, Malta e Emirados Árabes Unidos, dispondo de legislação específica com essa proibição.
Protector também não pode ser beneficiary do Trust, pelo conflito de interesse “(é como se a raposa cuidasse do galinheiro)”.
E se o Trustee não cumprir a (letter of wishes ou trust deed)?
Breach of trust
A quebra da confiança, prevista no proprio contrato de trust, acarreta em breach of trust, podendo ter repercussões cíveis e criminais, especialmente no Estados Unidos.
Ações fraudulentas por parte do Trustee, com eventual apropriação indevida dos bens confiados em Trust, são reconhecidas como crime nos Estados Unidos da América, conforme caso State v McCann, analisado pela Suprema Corte do Estado da Carolina do Sul em 1932.
Aliás, o trustee pode ou não, ser remunerado pela sua função de administrador, a dependendo da vontade do Settlor. Caso não suas obrigações previstas, poderá deixar de ser trustee.
Tipos de Trust
1.Revogável
Nessa modalidade, o Settler pode desistir de montar o trust e assim retomar todo o patrimônio que havia previamente transferido ao Trustee. Assim, o Trust deixa de existir e vigorar.
Quando o Settler morre, duas coisas podem acontecer:
A primeira possibilidade é que o trust se torne irrevogável e o trustee seja obrigado a seguir o ato de constituição para administrar esse patrimônio. Em regra, é o que ocorre.
A segunda possibilidade é a que o trust seja encerrado e o patrimônio seja transferido para os beneficiários.
2. Irrevogável
Um vez feito um Trust irrevogável, o Settler não tem o direito de se arrepender e reaver esse patrimônio em vida.
Há também uma certa confusão quando falamos sobre Trust irrevogável e a possibilidade deste ser extinto. Revogabilidade e extinção do Trust são situações diferentes.
Extinção do Trust
A extinção ocorre quando o Trustee (administrador) decide sair da administração. Caso não haja no ato de constituição que esse Trustee deva ser substituído, o valor do patrimônio do Trust poderá ser disponibilizado aos beneficiários ou ao Settler e o Trust é encerrado, tudo a depender da vontade descrita pelo Settler na letter of wishes ou trust deed.
No Trust, a previsão contratual rege os acontecimentos, bem nas diretrizes do Common Law. No Brasil, com legislação derivada do direito romano, não há essa possibilidade tão abrangente de definições até o momento.
Um Trust no Brasil? Ou Trust brasileiro?
Ressalta-se que a estrutura do Trust foi desenhada para os países com sistema jurídico Commom Law, com principal característica aplicação de normas e regras não estão escritas em códigos mas sancionadas pelo costume ou pela jurisprudência (decisão dos juízes).
De outro lado, o sistema jurídico Brasileiro é o Civil Law: aplicação das normas pela interpretação da lei escrita.
Quer dizer, em nosso ordenamento jurídico (conjunto de normas) tem como padrão serem escritas, com traços de common law, como algumas decisões dos tribunais superiores que alteram o entendimento de artigos previstos na legislação e não há previsão de Trust atualmente nos mesmo moldes aplicados no Exterior.
Alguns doutrinadores chamam de sistema híbrido.
Portanto, é importante ter cautela para que o Trust respeite a legislação brasileira, tanto na esfera sucessória, empresarial e digital, para não descaracterizar a estrutura de planejamento sucessório e patrimonial.
No momento atual, os brasileiros investidores, beneficiários e até mesmo das autoridades fiscais não tem clareza em relação a forma de tributação dos bens e valores recebidos por residentes fiscais brasileiros decorrentes de Trusts.
A divergência vem sobre a incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) ou Imposto sobre a Renda (IR), pois o Trust se enquadrariam em doação ou renda?
Conclusão
De maneira geral, o Trust é uma estrutura de planejamento interessante e possível para os brasileiros utilizarem no Exterior, com cautela, principalmente na hora de montar um bom ato de constituição, já que nele deverá constar como o trustee fará a administração e a gestão desse patrimônio.
Observa-se que os bens contidos no Trust passam a integrar o patrimônio do Trustee e não podem ser alcançados por credores, independente do tipo de débito, da mesma forma que eventuais credores do Settlor, também não poderão mais se valer destes bens para satisfazerem eventual crédito que possuem, uma verdadeira blindagem patrimonial.
O common law permite diferentes esferas de patrimônio, onde uma não se comunica com a outra. Portanto, seja credor do instituidor do trust, ou do trustee, o patrimônio descrito no Trust está a salvo de qualquer de seus credores.
Talvez seja o principal motivo do Trust despertar tanto interesse e ter fama no exterior.
Em terras brasileiras, não temos previsão legal para a utilização do Trust nos moldes Commum Law, apenas o Projeto de Lei 4.758/2020, que introduz na legislação brasileira o Contrato de Fidúcia, um regime de administração de bens de terceiros parecido, chamado de “Trust Brasileiro”.
Aliás, vale lembrar que Trust é diferente de holding familiar, são estruturas diferentes.
*Atualização de 2024: O projeto Lei n° 4758, de 2020 ainda aguarda aprovação. acompanhe clicando aqui.
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
ALMEIDA, Verônica Scriptore Freire e. O Direito dos Trusts no Brasil, Editora Almedina: São Paulo, 2020.
BARBOZA, ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ . As origens históricas do civil law e do common law. REVISTA QUAESTIO IURIS : São Paulo, 2018.
NETO, SALOMÃO EDUARDO. O TRUST E O DIREITO BRASILEIRO. JURÍDICOS TREVISAN EDITORA. São Paulo, 2016.DAVID, René. O Direito Inglês. 2ª edição. Editora Martins Fontes : São Paulo, 2000.
OLCESE, Tomás. Formação histórica da real property law inglesa: tenures, estates, equity & trusts. YK Editora : São Paulo, 2016.
Sobre a autora:
*Sofia Jacob é advogada internacional com mais de 16 anos de experiência em soluções jurídicas sistêmicas para brasileiros e estrangeiros, atuando tanto online quanto presencialmente.
Curso de Contratos Internacionais pela Harvard Law School: Relationship of Contracts to Agency
Indicada pelo consulado de Los Angeles, Califórnia.